Não é apenas sobre bicicleta!
Fiquei muito triste com a notícia de que Lance Armstrong tenha talvez
de devolver suas medalhas! Minha vida sempre esteve associada à
bicicleta mas acabei me envolvendo mais com o ciclismo de estrada em
1999, quando comecei a pós-graduação em Campinas, já com 30 e poucos
anos! Curiosa coincidência, o ano em que Armstrong ganhou seu primeiro
título do Tour de France foi o ano em que comprei minha primeira
bicicleta de estrada (as calois e monarks 10 que eu tive antes disso não
contam)…
Impossível não ser contaminado pelo espírito de superação de Lance,
suas frequências altíssimas de pedalada, sua superação do câncer, seu
exemplo inspirador de alguém que pôde se reinventar, vencendo o câncer e
o Tour, me contaminaram, num período em que eu fazia novos amigos,
conhecia o ciclismo de estrada, aprendia a pedalar longas distâncias e
começava uma vida nova em outro estado… Por tudo isso, acho que alguns
detalhes sobre o caso Armstrong, que está sendo discutido acaloradamente
por ciclistas, aficionados e fãs do atleta, me interessa e merece aqui
alguns comentários.
Primeiro de tudo, é importante lembrarmos que os órgãos de controle
de drogas no ciclismo vêm buscando estabelecer um controle sobre o que
os atletas consomem já há muito tempo. A USADA (órgão de controle
antidoping americano) tem levantado provas contra o ciclista nos últimos
anos (com testemunhas e amostras), o que é uma lástima para o esporte.
Se Armstrong é ou não culpado das acusações de doping, lógico que
isso não invalida a reputação do homem que lutou contra um câncer
terminal para continuar se dedicando ao esporte… Mas, de toda forma, a
miragem do doping é uma sombra de chumbo sobre o esporte hoje: nas
últimas grandes competições no esporte, diversos atletas (Merckx,
Contador, Pantani, e vários outros) foram desligados de provas ou
tiveram suas vitórias anuladas por suspeitas de doping, e isso é coisa
muito séria.
É difícil falar de caça às bruxas no caso do Armstrong, ainda mais
tendo em conta que as próprias agências norte-americanas estão
condenando o atleta. Falar que os casos de doping mal resolvidos do
passado legitimam as conquistas dos atletas dopados, é distorcer a
história e usar o passado em favor de um tribunal sem ética! Vale a pena
lembrarmos que o doping não está circunscrito apenas ao ciclismo de
elite internacional, povoando todos os contextos, mesmo as provas
nacionais e, quem sabe, muitos atletas amadores! Cabe, com esse caso,
uma reflexão sobre quais os limites e os objetivos da competitividade na
prática do ciclismo.
Parece haver uma aceitação muito grande entre os aficionados e
praticantes do ciclismo que o objetivo do esporte seja construir
vencedores, homens fortes que veem na sua máquina a possibilidade de
buscar prêmios e troféus. Se esse é o único objetivo do esporte, se é
isso que ronda as conversas e os sonhos de quem pedala, pode-se incorrer
no erro, na prática antiética, de se fazer o que for possível para
alcançar a vitória… O antídoto para isso é uma sólida concepção ética de
qual é a excelência que se busca para o homem montado em uma bicicleta!
Eu tenho a impressão que está saindo de cena, nos dias de hoje, a
ideia de que a bicicleta de estrada é também uma máquina de fazer amigos
e de realizar sonhos! Sonhamos o que é possível e o que entendemos ter
algum valor! Podemos sonhar com uma sociedade onde o transporte
alternativo seja viável e respeitado, podemos sonhar com um contato mais
intenso com a natureza, podemos sonhar em cruzar continentes, sermos
mais velozes que nossas próprias pernas, cruzar estradas como se
fôssemos centauros… E pra tudo isso a bicicleta pode ser a máquina
perfeita, na companhia dos amigos ou na solidão das nossas próprias
pedaladas!
Tenho visto muitas pessoas lamentando a ausência dos atletas que
foram cassados pelos exames antidoping nas últimas competições
internacionais de relevo. Temo que esse lamento seja uma manifestação de
uma concepção de ciclismo onde a finalidade do esporte é, apenas,
estabelecer quem é o mais forte, o mais veloz, ou o mais esperto. É bom
prestarmos atenção nessas escolhas que fazemos. Pois nesse dilema, ao
dividirmos o mundo dessa forma (como em uma hierarquia entre quem pode
pedalar na elite, na master ou entre os novatos), podemos estar
escolhendo o tipo de sociedade que queremos e, por consequência, a que
teremos!
Voltando ao início do texto, em que lamentava o escândalo do caso
Armstrong, eu me lembro que o ciclismo se tornou uma coisa essencial em
minha vida por ser uma forma de conhecer intensamente o mundo, de fazer
amigos, fazer a vida valer a pena sem a preocupação mínima de provar pra
quem quer que seja quem era o mais forte ou quem ganharia a medalha ou o
pelotão de pedalada. Eu estou triste com o caso Armstrong por ele fazer
sombra ao homem que buscou a superação, e por trazer à tona o homem que
fez tudo por uma medalha! Por isso, eu sou absolutamente a favor de uma
luta por um esporte sem drogas, estimulantes, potes mágicos ou fórmulas
mirabolantes! E acho que a bicicleta deve ser essencialmente uma
máquina de sonhar: sonhar com um ciclismo que pode valer a penas sem
medalhas e com uma sociedade que seria melhor sem disputas nem trapaças!
Texto originalmente publicado no site www.praquempedala.com.br
Creditos ao autor: Fabio Adriano Hering.
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